3 poemas de Lalla Romano

 
 
 

Tradução: João Coles

No sangue reside um som profundo

Assim soube quando as tuas mãos

tocaram as minhas pela primeira vez

Desde esse dia ouvimos

como que um vento levantando-se

com o mugido de um órgão

até que por fim domados

nos vergou, como maduras espigas, aquele vento



Eu estou em ti

como o amado cheiro do corpo

como o humor do olho

e a doce saliva

Eu estou dentro de ti

da misteriosa maneira

que a vida está dissolvida no sangue

e misturada na respiração




Ninguém pode derrubar-nos da alegria

a nossa alegria subterrânea

como água branda

como veio de rocha

Dois poemas de Lalla Romano

Tradução de João Coles

Também o ar morreu
o céu é como uma pedra

Os pássaros já não sabem voar
arrojam-se como cegos
da beira dos telhados abaixo.


O sono durante as manhãs
prende-me os joelhos
e cinge a minha testa
com suaves ligaduras

E não invocado então
entras nos meus sonhos
e vencida acaricias-me
com mãos violadoras

A meio do dia claro
uma vertigem me cega
e no obscuro sonho
trémula me impele

"À minha nação", Pier Paolo Pasolini


 

Pasolini na torre de chia.
Foto de Deborah beer

 


Nem povo árabe, nem povo balcânico, nem povo antigo,

mas nação viva, nação europeia:

que és tu? Terra de recém-nascidos, esfomeados, corruptos,

governantes empregados de latifundiários, prefeitos reaccionários,

advogadinhos besuntados com brilhantina e com pés sujos,

funcionários liberais, canalhas como os tios beatos,

uma caserna, um seminário, uma praia livre, uma confusão!

Milhões de pequeno-burgueses como milhões de porcos

pastam empurrando-se junto aos pequenos prédios ilesos,

entre casas coloniais degradadas já como igrejas

Precisamente por teres existido, já não existes,

precisamente por teres sido consciente, és inconsciente.

E só por seres católica, não podes pensar

que o teu mal é todo o mal: culpa de todos os males.

Afunda-te neste teu belo mar, liberta o mundo.



tradução: João Coles


“Alla mia nazione”, in La religione del mio tempo, Garzanti, Milano


ALLA MIA NAZIONE

Non popolo arabo, non popolo balcanico, non popolo antico,

ma nazione vivente, ma nazione europea:

e cosa sei? Terra di infanti, affamati, corrotti,

governanti impiegati di agrari, prefetti codini,

avvocatucci unti di brillantina e i piedi sporchi,

funzionari liberali carogne come gli zii bigotti,

una caserma, un seminario, una spiaggia libera, un casino!

Milioni di piccoli borghesi come milioni di porci

pascolano sospingendosi sotto gli illesi palazzotti,

tra case coloniali scrostate ormai come chiese.

Proprio perché tu sei esistita, ora non esisti,

proprio perché fosti cosciente, sei incosciente.

E solo perché sei cattolica, non puoi pensare

che il tuo male è tutto il male: colpa di ogni male.

Sprofonda in questo tuo bel mare, libera il mondo.

“Alla mia nazione”, in La religione del mio tempo, Garzanti, Milano

"Dante e os poetas contemporâneos" - entrevista a Pier Paolo Pasolini (1965)




Por ocasião dos 700 anos do nascimento de Dante, Pasolini aceita dar uma entrevista à rádio cuja transcrição permaneceu inédita até 1999, mais tarde publicada na edição Meridiani Mondadori em Saggi sulla letteratura e sull'arte.

Pasolini é submetido a um questionário de 11 perguntas:


1. A era de Dante apresenta as características de uma grande civilização que atingiu o seu auge e se vira, já, para o declínio, ou – se preferirmos – em vias de transformação para uma nova civilização que dali a pouco tempo se configuraria e se definiria por humanismo. Alguns dos aspectos da época em que vivemos – crise da cultura “burguesa” no sentido tradicional, e o delineamento de um novo humanismo – parecem indicar que um fenómeno semelhante se está a produzir no nosso século. Qual é a sua opinião acerca disto? Dirigimos-lhe esta e as seguintes perguntas apelando, naturalmente, à sua pessoal e viva experiência de poeta.

Parece-me uma pergunta demasiado “adequada” às circunstâncias contingentes das celebrações, e, por isso, pouco científica. Só nas histórias da literatura idealistas e românticas nos deparamos com semelhantes figuras de poetas que se agigantam entre uma época e outra, numa toponomia absurda onde uma Câmara está ao lado de uma Senhoria, uma Senhoria a um Estado, etc., etc., tal como num brasão popular. Dante não pairava fora da história, nestas prefigurações maníloquas de história futura: ele estava dentro da sua Florença e da sua Itália apenínica, e é ali dentro que o amamos. A partir do momento que o extraímos dali, torna-se num poeta oficial, ou, melhor, e digo-o com horror, num símbolo nacional, ou num símbolo universal: dois símbolos falsos e feios, ambos. Como se sabe, Dante teve uma grande ideia, a de usar a língua vulgar, mas também teve outra grande ideia, a de usar as várias línguas das quais essa língua e todas as línguas são compostas. O que demonstra a substancial democraticidade de Dante em pleno século XIV: se é que ele não usa o vulgar como possível língua institucional e literária para se opor em bloco ao latim, para o substituir na mesma função universal e meta-histórica. Se for articulado nas suas várias sub-línguas ou línguas sociais – da língua da aristocracia à língua dos malfeitores, do jargão literário à língua familiar, etc., etc. –, significa que a função do vulgar reflectia um momento real da sociedade. Mesmo sem recorrer ao determinismo de uma dada estética marxista dos anos 50, e remetendo-nos à revisão realizada sob o determinismo de Goldmann, é claro que a poesia de Dante tem estruturas homólogas às da sociedade municipal florentina: e as várias sub-línguagens encontram o seu princípio numa experiência de lutas sindicais, que opunham dramaticamente categoria social contra categoria social. Neste sentido, não me parece que Dante prefigure de forma alguma o humanismo iminente, e que, aliás, não prefigure de forma alguma nenhum momento da Itália futura: se ele porventura prefigurou algum momento ideal da evolução democrática das burguesias europeias, saltando todo o humanismo, foi o renascimento e a contra-reforma em Itália.


2. A atitude que Dante, homem e poeta, assume em relação aos problemas suscitados pela realidade imanente e transcendente do seu tempo, pode reflectir-se na posição que o escritor de hoje – enquanto homem e poeta – assume em relação aos problemas da nossa época? Sem dúvida que em Dante o compromisso do homem e o compromisso do poeta coincidem. Considera que para os poetas de hoje é possível uma semelhante coincidência?

3. Directamente relacionada com a pergunta anterior: e o resumo do real na sua totalidade (moral, filosofia, teologia, história, política, ciência), que faz do poema de Dante um documento talvez único na história universal da poesia, pode ser, hoje, repetido?

4. Particularmente na Divina Comédia, Dante tentou e efectuou a conciliação entre poesia e ciência. Hoje, numa situação bem mais dramática neste aspecto, considera possível esta conciliação para os poetas actuais, e que a mesma é indispensável e essencial àquilo que deve ser a poesia e à função que deve desempenhar: noutras palavras, à sua existência e à própria sobrevivência?

5. Dante acredita na palavra, que nasce nele através do mesmo acto de fé que o dirige a Deus, que também é palavra, através da qual a [palavra] humana atinge a sua verdade e a sua substância. O poeta de hoje, segundo se diz, duvida também da palavra, tal como de tudo. E, no entanto, agarra-se a ela, para fazer dela espelho do seu desespero, mas também como um acto extremo de fé. Não lhe parece que esta posição se aproxima, de certa forma, da concepção que Dante tem da função da poesia?

Também as perguntas 2, 3, 4 e 5 – peço desculpa, mas parecem-me perguntas radiofónicas, às quais uma pessoa pode responder sim ou não indiferentemente, dependendo do humor.


6. No panorama da poesia do século XX, existem algumas figuras representativas nas quais a presença de Dante é claramente perceptível, embora de forma e em certa medida diferentes. Basta apontar para Ezra Pound, Thomas Stearns Eliot, Saint-John Perse. Considera-os casos isolados, ou sintomas de um renascimento dantesco?

Disse, ao responder à primeira pergunta, que Dante prefigura, quando muito, em vez do humanismo italiano, etc., alguns momentos da evolução democrática burguesa na Europa do século XVI em diante. Pois bem, eu pensei em tudo excepto nos nomes referidos nesta pergunta. O uso que Pound ou Perse fizeram de Dante foi um uso arbitrário e estético, alinhado, tal como sucede com os poetas chineses... Há uma espécie de processo degenerativo da cultura europeia do século XIX graças ao qual os textos da história literária são postos fora de contexto histórico, colocados numa plataforma meta-histórica que deturpa os seus significados. Tal plataforma é o laboratório do poeta (o laboratório, entenda-se, é um lugar extremamente poético), e aí os significados de uma obra estão sujeitos a violências deveras sádicas. Dante em Pound é exactamente como um judeu nas mãos de Hitler.


7. Especificamente no campo linguístico, técnico e expressivo, considera que a lição de Dante conserva a sua validade e, portanto, a sua actualidade? Pessoalmente, nas suas experiências concretas na página, retirou alguma vantagem da convivência com a poesia de Dante?

10. Em Dante recai o mérito de ter criado a língua italiana. Mas na evolução desta, o contributo de Petrarca e de outros autores teve maior peso. Neste aspecto, parece-lhe que na poesia italiana do século XX, particularmente a do pós-guerra, a presença de Dante seja menos evidente que a de Petrarca? E, caso a resposta seja afirmativa, quais são, na sua opinião, as razões?

11. Hoje podemos avaliar, em toda a sua dimensão, a revolução linguística de Dante, aplicada, sobretudo, na Divina Comédia. Partindo de tais considerações, e traduzindo os conceitos em termos modernos, considera arrojado falar, a propósito de Dante, de experimentalismo linguístico?

(7, e em parte, 10 e 11) Houve nos anos 50, no seio de um grupo de especialistas muito empenhados nisto, com base num famoso ensaio de Contini, uma espécie de assunção de Dante a símbolo. O seu multilinguismo, as suas técnicas poéticas e narrativas, eram formas de um realismo que se opunha, uma vez mais, à Literatura. Pelo que eu, da forma como trabalhava naqueles anos, pensava em Dante como uma espécie de guia, cuja lição, menosprezada ou mistificada ao longo dos séculos, havia recomeçado a actuar na Resistência. Agora, essa ideia de realismo dos anos 50 parece, e está, superada: e com ela esmorece a interpretação dantesca da «pouca companha» [1] que dizia eu.

8. Repreende-se os poetas de hoje pela tendência a recolher e colocar em evidência os aspectos negativos do nosso tempo (que são, sem dúvida, predominantes) em vez dos positivos (que são poucos, mas existem); tendo em consideração a ideia de crise como factor determinante, que confere a priori validade à inspiração, aos temas abordados, às soluções formais. Considera, pelo menos parcialmente, fundamentadas essas evidências? E, caso a resposta seja afirmativa, pensa que Dante, com o equilíbrio entre a participação na realidade histórica do seu tempo e a afirmação da sua pessoa e dos valores da sua fé, consegue encarreirar os poetas de hoje para uma visão mais clara dos problemas da nossa época e das dificuldades expressivas que estes comportam?

Prefiro o Lager de Pound a este tipo de função do poeta que a oitava pergunta implica, em nome do bom senso e da opinião média e, por isso, oficial. Dante passou uma vida atormentadora em exílio por ter dito não a pretensões semelhantes do establisment, facilmente antedatáveis no seu tempo.


9. Mais especificamente, considera possível, hoje, a recuperação dos valores em que Dante acreditava, ou, pelo menos, de valores equivalentes? Ou pensa que o percurso da história nos encaminha para a aquisição de valores totalmente diferentes, como alternativa? E quais seriam, na sua opinião, estes novos valores?

«Mais especificamente», creio que a recuperação dos valores em que Dante acreditava não é possível, sempre graças ao caminho anti-dantesco que a Itália tomou, até chegar à contra-reforma e à actual burguesia, profundamente inimiga de qualquer tipo de realismo, mesmo o religioso. Recuperar esses valores através da elaboração das grandes burguesias europeias que perpetuaram, de algum modo, o espírito municipal, é igualmente impossível, porque os valores do neocapitalismo não são religiosos, nem equivalentes, a não ser num sentido aberrante, aos religiosos. É claro que por trás de cada técnico se esconde um místico: porém, que místico?

[1]. Versos 100-102 do Canto XXVI da Divina Comédia.

Dois poemas de Antonio Delfini

Tradução: João Coles


Não te conheço
nem vou querer saber quem és
somente um candeeiro
nos dirá
do nosso encontro
um candeeiro que se apagará
um candeeiro que não dará mais luz
um candeeiro que um dia
não nos dirá
mais nada
esquecido
o nosso encontro.


Caluda caluda
que vem aí o poeta
deixemo-lo passar
falem baixo meninas
abram as janelas
com suavidade
Numa cidade
de trinta mil habitantes
em mil novecentos e trinta e dois
ainda há gente
que espera que o poeta
passe
com o seu passo mortiço
Esperam que ele passe
não por respeito
mas porque é tão curioso
ver um poeta
com um casaquinho
apertadinho apertadinho
Mesmo as raparigas
mais modernas
esquecem por um minuto
o alfa romeo...
para ver o poeta
e rir
rir tanto
daquele seu casaquinho
coitadinho
tão pequenino.

In Poesie della fine del mondo, Einaudi


Non ti conosco
non vorrò sapere chi sei
soltanto un lume
ci dirà
il nostro incontro
un lume che si spegnerà
un lume che non farà più luce
un lume che un giorno
non ci dirà
più niente
dimenticato
il nostro incontro.

Zitti zitti
che c’è il poeta
lasciamolo passare
fate piano ragazze
aprite le finestre
con dolcezza
In una città
di trentamila abitanti
nel millenovecentotrentadue
c’è ancora della gente
che aspetta il poeta
passare
col suo passo smorzato
Lo aspettano passare
non per rispetto
ma perché tanto curioso
vedere un poeta
col giacchetto
stretto stretto
Anche le ragazze
più avanzate
scordano per un minuto
l’alfa romeo…
per vedere il poeta
e ridere
ridere tanto
su quel suo giacchettino
poverino
tanto piccolino.

In Poesie della fine del mondo, Einaudi