Caderno 2

Powered by Issuu
Publish for Free

Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€

Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

A Enfermaria 6 é uma plataforma editorial sem fins lucrativo. Todo o dinheiro resultante da venda dos exemplares será usado para financiar futuras publicações.

Texto para o menino que por vezes me visita, quando se cansa de meninas, e que doravante chamarei de Maximin, como se este fosse o último bilhete de Elagabalus a Hierocles

Como o sol que incha e cresce, 
Maximin, são teus
a pujança, o tônus e a tesura. 
Quem-me-dera pudesse dar-te 
todos os dias 
o que é digno de tua condição 
cesariana, ou fosse eu a carruagem 
conduzida por tua potência 
equina, oxalá 
eu o cavalo que montas 
com maestria, charioteer, 
eu, tua cheerleader, que vivo 
da caridade do teu epidídimo, 
ora deixa-me 
descansar o pescoço 
extenuado sobre teu corpo 
esponjoso, meu cabelo 
confundindo-se com teus parcos 
pelos púbicos, já quase públicos, 
Maximin, tanta é a segurança 
com que te exibes no mercado 
e na ágora, maximiza-me 
em tua perene intermitência, 
diariza tuas doações 
tão fluidas sobre meu rosto, 
je vien, tu viens, 
então vem e quebra 
com teus sucos 
meu jejum, Maximin, 
minimiza minha idade, 
mexe-me contigo em mim, 
tantas são, miríade, 
as posições possíveis 
entre cavalgadura 
e montaria, Maximin, 
machuca-me 
à prostrada, naquele pontículo 
entre delícia e cicatriz, 
pois os cães pretorianos 
já se aproximam 
para arrastar-me aos gritos 
desse trono que usurpo 
quando te cansas do vúlveo 
e escalamos a torre de marfim, 
mas ainda assim trono 
onde se crê que alguma menina 
melhor sentaria, 
Maximin, e já sabemos 
qual será nosso fim. 

 
§ 
 
Ricardo Domeneck. Extraído das “Odes a Maximin”, inéditas. 

 

Gajos Porreiros

Muitas pessoas que conheço, no género adequado a esta circunstância, são gajos porreiros. Sem grande esforço, dizendo-o (foi isto que impôs o Linguistic Turn da segunda metade do xx) e parecendo-o (é impossível parecer um gajo porreiro e não o ser, uma autêntica revolução ontológica e moral).

Numa época enredada em profundas dúvidas, com uma probabilidade elevada de passarmos os últimos 10 anos de vida a babar-nos e a tomar um cocktail de moléculas medicinais, óptimo para o aumento da esperança de vida sem qualquer esperança de felicidade, nada melhor do que uma epidemia de gajos porreiros. Massificação de pessoas sem arestas, deslizando irresistivelmente entre posições controversas, submissas, cheias, até rebentar, de senso comum, assoberbadas de inteligência circunstancial (resumida nos “cada um é que sabe de si” e “em Roma sê romano”), vagamente humanistas, vagamente ecologistas, vagamente de direita ou de esquerda, com gostos concêntricos, sorriso fácil, “amigas do seu amigo”, especialistas no dois-em-um da palmadinha/facadinha nas costas, prontas para a cervejinha e blindadas a qualquer erudição que não se verta imediatamente no mundinho onde vivem... Embora a esta capacidade de se moldar, qual gelatina humana, não corresponda um bom relativismo. Paradoxalmente, os gajos porreiros desenham um mundo aperspectívico, têm convicções duras, por detrás da tolerância de fachada, vivem fechados nos seus pontos de vista, que consideram, na estreiteza do horizonte de expectativas individualista, os melhores do mundo.

Dir-me-ão, assim “como quem não quer a coisa”, que apesar de tudo tiveram a força demiúrgica para se criariam a si próprios. Pois bem, pura mentira, é impossível um gajo porreiro ter tido a força e a destreza decisórias de se fazer a si mesmo. Eles, todos, são produto dos meios de comunicação de massa modernos e pós-modernos (os primeiros acreditavam no Progresso, substituto de Deus; os segundos viraram-se para a polifonia discursiva, o conflito de interpretações, a fragmentação das perspectivas, numa palavra valorativa: caíram no raio-de-mundo-patchwork), do Facebook à televisão, dos jornais aos blogs, da rádio ao Spotify..., os média reorganizaram a “realidade como realidade na nossa cabeça”, isto é, definiram as linhas de realidade que pode ser observada, sem risadas ou dúvidas sistemáticas, como real, depois puseram isso na nossa cabecinha para modelar e fazer emergir o gajo porreiro que há em nós (Foucault falava do nazi que se esconde em cada íntimo).

Por isso, os porreiraços apenas precisam de parecer, parecer que toleram, trabalham, ajudam, compreendem, amam, agem, combatem... para o ser. Talvez a grande novidade na ontologia do porreirismo seja a de que a representação (estar no “lugar de” e “fingir que”) é o ser. O “Mascara-te de porreiro, diz que és porreiro e serás porreiro!” tornar-se-á o princípio de doutrinamento ao porreirismo dos escassos resistentes. Onde toda a cultura acima do “imediatamente agradável” se reduzirá a pó; as controvérsias serão aplanadas em consensos claros e simples, bons para todos os contendores; os discursos revolucionários baixarão o tom e serão reciclados para as Marchas Populares; a angústia da influência dará lugar a milhares de Reforços Positivos derramados sobre todos os que se aventurem, por exemplo, na escrita de um best seller; e quando se pisarem algumas normas, bastará uma pequena multa e algumas palmadas no rabo; a entreajuda, no amor e na crítica, parecerá tão autêntica que ninguém terá a coragem de a questionar; mas acima de tudo, todos recitarão o credo no homem porreiro (substituto, até ao certo ponto, do Übermensch), uma lengalenga sem referente, tanto mais que, como nos ensinou o mestre supremo da ironia Oscar Wilde (que reprovaria no exame para gajo porreiro): “Quem diz a verdade, mais cedo ou mais tarde, é apanhado em flagrante.” E quem quer ser apanhado em flagrante, ah, quem quer?

de «Cenas de uma vida conjugal»

Andamos até ao centro do ruído,
ao círculo em que tudo se comove.
Não sei falar de outra coisa:
esta casa, vozes espantadas,
risos que bafejam mais vida sobre a
corrente daninha que nos amarra os pés.

Sentada no colo de ti mesma,
num canto remexendo cabelos,
nunca soubeste de tal encontro.
A conversa entretida com seu arrombo,
puxando varizes, convertendo noções,
eu a morder o menos possível numa
hora discreta para que chegues.

Mas a hora não avança nem resolve
e eu pensei que estávamos juntos.
Os meus sinais são teus papéis ilegíveis
deixados sobre a mesa, ardendo
fundos num prato sujo. A persiana
faz subir a luz: equação mirabolante.