Os melhores de 2015

Um poeta escreve

Um poeta escreve

País de jograis e de génios nem a chicote domáveis, Portugal pauta-se por uma fecundidade criativa que desacredita a feitura das habituais listas dos melhores do ano. Ciente da abundância criativa lusitana, a massa crítica que coloniza os nossos (leia-se chegados ao coração) escassos mas valiosíssimos suplementos culturais tende, e bem, a suprimir análises que incluam reflexão. A ausência de fontes credíveis impossibilita-me de descobrir quem tem barrado (um político sinistro, um perverso legislador?) o acesso dos mais reputados críticos nacionais a algo por cá tão pouco massificado como o pensamento, faculdade humana nefasta para indivíduos inexperientes ou inabilitados para agir desprovidos de psicopatia. Quem foram, então, os mais grandiosos prosadores e versejadores deste Portugal mais nascido para sentir do que para raciocinar? 

Da vasta produção poética de José Não-Bebas-Tudo (nome de guerra), que infelizmente não desaguou em mais do que meia-dúzia de versos impressos, sobressai o poema “Complexidade do amor”, dado à estampa pelo guardanapo do café que quis o acaso que fosse eu, atenta às minúcias artísticas, a encontrar. Neste poema, que evito reproduzir para instar o leitor a percorrer os cafés do Chiado em busca de semelhante guardanapo, José, apenas José, quebra as regras da poesia. Soprou-me um anjo que se projecta para 2016 o lançamento em livro de uma recolha dos mais belos guardanapos deste delinquente literário que, a viver à conta da reforma da avó, comprova que Portugal não respeita os seus artistas. 

Do céu caiu uma estrela, o revolucionário Manuel Gandulo, pois claro. Marginal por vocação, desliza pelos balcões do Cais do Sodré numa obsessão pelo vómito da sociedade que o torna personagem central da sua arte. Quem o vê passar durante o dia, encostado às paredes para não tombar de bêbedo, não consegue imaginar que o esfarrapado, malcheiroso e cambaleante barbudo com tiques de arrogante (não me toque, não me toque que sou poeta, brada a cada esquina) representa na verdade o que a poesia tem de melhor: a capacidade de transpor para a arte a bestialidade da vida. Se este piolho andante nunca escreveu, foi por disso não ter necessitado: a sua pose transcende o papel e a caneta. 

Criado em berço de ouro, o jovem António Mais-Subterrâneo-Não-Se-Arranjava não se rendeu a um determinismo que o empurrava para uma carreira na advocacia ou como representante da República no Parlamento. Os sete anos monasticamente cumpridos na Faculdade de Direito foram-lhe essenciais para compreender que a sua missão no planeta diferia da missão que os pais diziam ser a sua. Lidos os primeiros poemas, meteu na cabeça que seria poeta laureado e sisudo. Num afã de ser outro, fez o possível e o impossível para conquistar um lugar ao Sol. Perseguiu, ameaçou e espancou os mais nomeados críticos da praça. Não desistiu até ter revista, editora e livros próprios. Em 2015 consagrou-se como artista de excelência com um livro banalíssimo que, depois de coagida por sms nocturna, direi que me parece promissor se lido de trás para a frente e de olhos fechados. 

Quem quer saber do que de melhor se publica no estrangeiro quando o que é nacional supera o resto? Das subtilezas da intuição e do sentimento sabemos nós, povo fundador de uma ruralidade divina, homens-trovão, descendentes de Neptuno, filhos de Viriato, heróis de uma Expansão futura. 

O mal académico

 

Segundo um estudo publicado em finais do ano passado pela mais reputada universidade siberiana actual, a massificação da atribuição de bolsas e de títulos de doutoramento tem vindo a contribuir para uma inelutável decadência do povo português, espécie já não muito abonada no que concerne ao intelecto. Essa decadência tem-se feito sentir de tal maneira que um dos mais renomados professores da dita instituição, o Professor Doutor Fiódor Dostoiévski, autor de O Idiota, incontornável trabalho sobre este flagelo chamado doutoramento, sublinha a importância da leitura para o combate  contra a bestificação provocada pela longa exposição aos pútridos ares académicos. Também vítima de uma pequena dose de estupidez, amenizada pela escrita e por um vício revitalizante pelo livro enquanto objecto transmissor de conhecimento, o doutor Dostoiévski confessa que um dos momentos mais deprimentes da sua vida aconteceu pouco antes de entregar a sua tese de doutoramento, quando o seu orientador o aconselhou a ler menos se quisesse vir a ser um bom universitário.

Se a universidade tem funcionado como sugadoiro cerebral, o que fazer para pôr um fim a esta epidemia? Como terminar com este surto de idiotice? Estas questões conduzem-me ao escritório de uma doutorada portuguesa, exilada permanente num apartamento à beira de uma praia de Tânger. “Os meus problemas surgiram no dia em que o meu orientador me encostou à parede, perguntando-me com uma fúria imensa por que motivo não o procurava tanto quanto os seus outros orientandos.” O que aconteceu após este encontro furtivo com um dos líderes da animalização humana é indescritível mas, para bem da ciência, atrevo-me a prosseguir: “Vivi um martírio: fui obrigada a assistir a todos os colóquios e seminários do orientador, compraram-me um relógio igual ao dele, não me deixaram dormir enquanto não lesse toda a sua obra (por obra entenda-se: tese de doutoramento remastigada ao longo de décadas, de forma a ampliar um curriculum vitae com trabalhos versando sempre o mesmo tema, mas de diferentes perspectivas).” Pergunta-se o leitor: quem obrigava esta doutorada a tão árduas tarefas? “Ameaças veladas, comentários que me feriam de morte. Chegaram a insinuar que não acabaria a tese se não me tornasse amiga pessoal e admiradora dos meus professores.” Depois destas vivências, a doutorada fugiu de Portugal, disse até nunca mais à Universidade de Lisboa, e apanhou um navio para Marrocos, onde hoje se dedica a vender chá de hortelã a turistas. Tendo conseguido sobreviver, dedica-se igualmente a sessões de terapia via telefónica com estudantes de doutoramento em vias de se tornarem macacos. “O que lhes digo é isto: da mesma maneira que as vossas mães vos ensinaram a não falar com estranhos, eu ensino-vos a enxotar assassinos disfarçados de cavalheiros”, sentencia e conclui: “Para acabar com esta praga dos doutoramentos, estou convencida de que o método mais eficaz consistiria na leitura massiva da obra de Shakespeare em todas as faculdades. Despejar toneladas de obras clássicas em cima das faculdades, mediante o auxílio de aviões, poderia de igual modo auxiliar a expurgar estes vermes.

 A solução passa por ler. A doutorada e Dostoiévski coincidem neste ponto. Decidida a pôr à prova este método, iniciei-me na leitura de Platão. Li a obra completa de Platão. Ou da obra publicada em português. Li ao lado de professores, de alunos, de funcionários. Só a visão do livro derrubava professores, mesmo os mais anafados, os instalados num sistema que lhes permitiu acumular carnes e ranço e ignorância. Experimentei recitar Shakespeare e foi vê-los tombar, pálidos, clamando por palha para a desidratação. O método da leitura funciona. Há uma salvação para a humanidade. Acabar com os idiotas académicos não é, no entanto, tarefa a que se possa dedicar o simples mortal. Apenas gente experimentada sobrevive a estas batalhas. Reproduzindo um excerto de O fechar da mente, memória da autoria do mais premiado escritor da comunidade esquimó: “A universidade tem destruído pessoas muito dotadas. Sente-se primeiramente uma leve presunção, uma vaidade enganadora, sintomática de uma doença muito profunda. O esvaziamento cerebral processa-se em pouco mais de um ano. Exposto a seis, sete anos de estupidez, como pode um aluno sobreviver sem mazelas? Não pode. Perdi um filho para a universidade. É o meu desgosto. Refugiei-me num iglu. Não aguentava assistir à derrocada do meu filho, um ser incapaz de enfrentar o mundo real, sempre obcecado com colóquios e papers e notas de rodapé. Comia na cama, rabiscando bibliografias e olhando para papel inútil, papel morto. Um pesadelo.” O objectivo deste texto passava por descobrir e fornecer pistas para a cura de uma doença para qual ainda não existe diagnóstico preciso. Essas pistas foram dadas, agora vou ali fazer um resumo de cem palavras em inglês para enviar para uma publicação com. Peers. Pares. Ai. Também eu?

Estrela pura

O poeta, romancista, escritor e pensador António Carlos António é um homem ocupadíssimo. Desde o ano passado que ficara de me conceder uma entrevista. António Carlos António é a pérola que mais cintila dentro de uma gaveta de pérolas que ainda não chegaram a ver a luz do dia. O seu momento chegará. Acredito eu, acredita quem o lê, quem o ouve, quem o vê. António Carlos é bonito, é inteligente, ginga sem tocar no solo com a sola dos sapatos. Com alguma agressividade, pede-me para que publique a entrevista sem revisões. Deseja a coisa em bruto, como tudo que faz. Com brutalidade. 

O que anda a escrever?
 

Um ensaio sobre um romance da minha autoria ainda não publicado. Trata-se, talvez,  do ensaio que melhor analisa a minha obra ficcional. É algo muito abrangente. Quem quiser perceber minha ficção, necessitará certamente de ler este trabalho mental nunca vertido para o papel. Agora perguntar-me-ia como se pode ler algo não escrito. Ouvindo-me.

Quando teremos acesso aos seus escritos? Não sei se tem noção de que ainda não publicou nada.
 

(Sorrisos) Eu não procuro editoras. As editoras que me procurem. Os meus manuscritos estão disponíveis, quando tiver paciência transponho-os para o papel. Basta virem ter comigo. Apanhem o metro para o Intendente, perguntem pelo António Carlos António, ou então pelo “Bonito”, e não haverá quem não saiba dizer onde moro. (Cofia a barbicha) Modestamente, muito modestamente, tenho vindo a construir uma fama que transcende o Intendente. Sou o escritor mais famoso de Lisboa. E nunca publiquei nada. Quem se pode gabar disso? Até lhe posso dizer que preferiria nunca publicar em papel e andar de casa em casa a declamar a minha obra. 

Gostaria de ser um Pynchon ou um Salinger, alguém que não aparece?
 

Sou o António Carlos António, não me confundam com outros. Não conheço esses autores. São bons? Sabe, sou puro em tudo o que faço. Não leio outros autores para que a minha escrita não sofra distorções. Quero escrever sem influências. Posso aparecer. Gostaria de aparecer. No entanto, reflectindo sobre o assunto, tenho alguma dificuldade com algumas questões. O que é aparecer? Ser influenciado. Ser um animal social. Rejeito. Não uso telemóveis para que a tecnologia não me influencie. Não escrevo no computador com receio da influência. Não quero ser influenciado. Sabe como escrevo? Com o cérebro. Nem o papel merece o esforço da minha mão. 

Diz-se puro. Não lê enquanto escreve “mentalmente”? 
 

Eu inverteria a questão. Pode um autor ler enquanto escreve? Se eu lesse esse tal Pynchon enquanto escrevo, escreveria como Pynchon. Não posso dar-me a esse luxo. Estaria a contribuir para a alienação de que o mundo padece.

Alienação no sentido de Marcuse?
 

No sentido de António Carlos António. Posso gabar-me de nunca ter lido um livro. Não preciso de ler para escrever. Possuo pensamento próprio. Como poderia ler se estou sempre a escrever? Não se pode ser duas coisas ao mesmo tempo. Escolhi a escrita, é da escrita que me alimento. O meu cérebro está cheio de António Carlos António. 

Consulta dicionários?
 

Claro que não. As palavras chegam-me quando devem chegar. O que não aparece é porque não estava destinado a aparecer. 

Qual o tema do seu romance?
 

O meu ensaio é sobre isso. O romance é sobre mim próprio. Sobre o facto de eu ser alguém que não precisou de ter mãe, nem pai, que não passou por licenciaturas, que não leu. Fiz-me a mim mesmo e continuo a ser eu, imune a tudo o que me rodeia. 

Tem preocupações sociais?
 

Podemos dizer que sim. Escrevo para combater essa corja de analfabetos que para aí anda, saltando de bar em bar, gabando-se da sua própria genialidade. Sou o representante do povo. O povo nas letras. Vomito quando penso nessa praga de escribas que se arrasta pelas ruas de Lisboa. Maltrapilhos que enchem o Intendente, os Anjos, o Bairro Alto. Essa malta mete-me nojo. Com o seu estilinho provinciano. Aldeões mascarados de citadinos. Com as roupinhas rasgadas e as malhas e sei lá o quê. Um ror de pulhas. 

A inveja é uma preocupação social?

Inveja? Eu. Ai que desmaio. Desfaleço. Vejo escuro. Ceguei. (De apalpadela em apalpadela chega-me ao peito) Onde estou? Inveja? Ai que me feriram. Pior do que Lear. (Conhece Shakespeare apesar de afirmar nunca ter lido nada) Mulher desalmada.

Preocupa-se com alguma questão importante?

Preocupo-me com a morte, com a minha morte, não quero morrer. Depois de mim, que tipo de artista haverá? Esta ralé? (Apruma a gola da camisa) Vamos esclarecer uma coisa. Não sinto inveja. Sou um altruísta. Sou mundo. Os meus braços são divinos, podem ser repartidos pelos pobres. O meu corpo é como um livro infinito, passível de múltiplas leituras e interpretações. O meu corpo nu repartido pelos pobres, como pão e vinho. O tema da minha obra resume-se a eu ser mais do que o planeta. Não posso ler nada para além daquilo que é meu, daquilo que penso, pois nada é maior do que eu. Eu sou o planeta. Os pobres que venham a mim e se alimentem dos meus pensamentos. (Emociona-se, a voz treme-lhe) Fossem todos como eu e não haveria fome.

Qual a sua opinião sobre Herberto Helder?

Não sei quem é e, sublinhe-se, prefiro não saber.

E Oliveira?

O meu tio ardina. Um homem assaz respeitável. Casou-se com uma brasileira e fez fortuna lá para o Minho. Foi pioneiro no ofício do proxenetismo lá para aquelas bandas.

A entrevistadora fecha, amargurada, o caderno. Ainda não apanhou escritor que não lhe enchesse as medidas. Todos touros bravios, todos homens vigorosos. Este portento entristece-a. O sexo entristece-a. Será isso a alienação? O momento depois do prazer. A morte de Bataille?