carta de género

olá

 

   nunca te contei isto. tinha dezoito anos quando fui pela primeira vez e última vítima de violência. na altura tinha duas casas seguidas uma em cima da outra em baixo e por acaso saí à rua com a companhia da altura que trazia dois sacos de compras e tinha trinta e quatro anos. tinham pouco peso os sacos os anos não pesavam-lhe muito ai se lhe pesavam lembro-me que num deles os sacos não os anos nem vinte bacalhaus estavam é claro que estavam secos naturalmente não lhe ia passar para a mão vinte e três bacalhaus debulhados ou demolhados não sei como se diz às searas sempre tratei com respeito e o outro saco tinha apenas vinte e quatro sacos de sal admito que talvez fosse muito mas afinal aquele exercício todo agachamentos aulas yogas posturas alongamentos e pesos é para quê ah e tal e eu desde o meu acidente custa-me pegar em coisas. no final do dia nem quinhentos quilómetros eram queixa-se com voz irritada horrível ah e tal amor detesto que me chame amor já lhe disse para me tratar pelo meu nome queixa-se ah e tal amor já me cansa tu também podias levar um dos sacos e eu respondi está bem eu ajudo-te que pena eu também não estou mal da cabeça respondi eu ajudo mas entretanto peguei num dos sacos e nem vinte metros andei e tive de descansar trinta e quatro horas sabem as minhas cruzes não tenho culpa nem tenho de me sentir mal por isso era o que faltava temos de ser uns para os outros e viu-me naqueles preparos e disse deixa estar eu levo e eu disse-lhe tudo bem pega em tudo e logo ali foi a primeira violência olhou para mim olhos nos olhos e percebi nitidamente que me estava a tentar magoar electromagneticamente que estava a dizer preguiças não pegas nem num saco e deixas-me aqui com este peso todo e eu a pensar mas que besta então não percebe que o cansaço em mim é imenso não é fácil estar vivo e andar de vez em quando a pé reparem não é para todos logo ali ficou tudo estragado. passados duzentos quilómetros estávamos nós a chegar à outra extremidade do mundo continuava com aquelas trombas agressivas e percebi que tinha dito qualquer coisa entredentes talvez mesmo só no seu pensamento e eu percebi é pá esta coisa aqui é mesmo indelicada só pensa em si então tanto exercício para quê aqueles agachamentos pesos corridas yogas aulas vídeos crossfitting babylifting romewatching touristing e tal. sim tem tempo para isso lá eu não não tenho tempo para essas coisas. bom a coisa já estava azeda entre nós quando reparei que me disse algo como essa merda do saco estava pesada podias-me ter ajudado não disse com palavrões mas disse-o com  agressividade extrema e calma grotesca quase a roçar o grito contido parecia uma rolha de champanhe a rebentar e logo ali estremeci caramba as pessoas não me criaram para estas coisas comigo sempre foram delicadas comigo nunca me habituaram a este tipo de violência extrema e calei-me logo ali nem lhe dei hipótese àquela coisa. durante trinta dias nem nos falámos bem que tentava mas eu toma lá disto e toma lá daquilo quando falávamos eu dizia-lhe aquelas coisas normais não tens maneiras não és uma pessoa feliz devias procurar um psiquiatra tu não és normal a tua infância não valeu nada não sabes viver em sociedade se morreres nem dou por isso a tua mãe isto o teu pai aquilo e outras coisas ainda mais verdadeiras nem me lembro bem. quando olhava para mim eu desviava o olhar e quando tentava falar comigo eu respondia-lhe mas com muita cautela porque a mágoa era imensa e nem todos os dias se é vítima de violência e eu nem devia ter perdoado da primeira vez. entretanto foi preciso carregar mais quatrocentos e vinte quatro sacos de bacalhau perguntas para quê tanto bacalhau sei lá é absurdo mas eu até carreguei cem repara que apenas carregou com os outros três terços afinal tanto exercício é porque tem tempo não é e é mesmo assim aquelas aulas todas e mais os agachamentos e as dietas e os alongamentos e os abdominais e pronto já sei a minha forma não é a melhor mas até parece que temos de ser todos fortes que nem touros isso é um preconceito já não estamos no século dezanove. disse-lhe nunca mais te vou pedir mais nada ouve lá que parvoíce da tua parte nunca mais nunca mais. entretanto ao quadringentésimo vigésimo quinto saco gritou pega nesse pá mas disse-o com tal raiva no olhar e com tal berro que eu decidi nunca mais haveria diálogo entre nós. e é assim que devemos ser já basta. até havia coisas boas na relação cozinhava bem e tinha a casa arrumada mas é isso que pensam todas as vítimas de violência antes de serem assassinadas já lhe disse temo pela minha integridade física a sério qualquer dia ainda me matas ah sim pote de merda ainda no outro dia tive oportunidade de dizer que não vales nada e que não me mereces andar para aí mas não vales nem metade da minha integridade moral em comparação comigo és uma lesma moral um escroque moral um cagalhoto moral e podia continuar por aqui fora mas não tenho paciência não entro no teu jogo prefiro ficar em silêncio porque assim é melhor e tu também já que não dizes nada de jeito é melhor calares-te a não ser que tenhas um tema interessante estás sempre de boca calada és horrível devias ir a um psiquiatra a tua infância foi difícil não foi até estás bem mas eu não deixo de ser uma vítima disto e estou para aqui mas é horrível temo pela minha saúde. por isso por favor se alguma coisa me acontecer já sabes com quem me casei. casei com uma besta quando tinha dezoito anos. ainda bem que já passaram outros dezoito desde o meu divórcio mas nunca nunca permiti que nada semelhante me acontecesse outra vez. era o que faltava. ainda me lembro da última vez em que discutimos. tudo a propósito de um dia ter insistido em ser o que era quando já lhe tinha dito que aquela forma de ser para mim não dava. que horror. ainda me lembro de lhe ter dado um tiro nos cornos. sim cumpri dezoitos anos de prisão mas não considero violência era o que faltava. é que estávamos na rua. saquei do meu revólver era a primeira vez que escrevia a palavra e lá vai disto pum pum pum pum quatro tiros à queima roupa. nem tremi. afinal tive uma infância melhor que a tua. veio a polícia. ficaram admirados com o meu género e com a forma como os leitores lêem esta carta que não atribui género a qualquer um dos seus sujeitos ela ele etc.. e o resto já sabes toda a gente sabe é como se o sujeito tivesse que ser forçosamente tu sabes o quê. discriminação. todos nós lemos como queremos.

 

angra do heroísmo

agosto de 2018

Enfermaria 6: nova vida

Em Junho, a Enfermaria resolveu alterar o seu formato de submissões abertas. Tomámos esta decisão, numa reunião impecavelmente louca, porque nos pareceu que fazia mais sentido ter um núcleo restricto de colaboradores regulares e alguns autores convidados todos os meses, de modo a trazer alguma diversidade aos conteúdos do blogue e, ao mesmo tempo, sem contradições graves, tentar manter uma linha editorial coerente.

A todos os autores que colaboraram com a Enfermaria até aqui, a nossa gratidão, e serão sempre parte da Enfermaria.

A lista de autores que escreverão na Enfermaria é a seguinte:

 

Convidados em Setembro

Colaboradores regulares

Caderno 5

Caderno 5

os pastéis de nata ali não valem uma beata [antologia de 2017]

Enfermaria 6, Lisboa, maio de 2018, 220 pp.

Editado por João Coles, José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira e Tatiana Faia

Capa de Gustavo Domingues

12€

Autores

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Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site durante 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

"Uma espécie de Editorial", Cassandra Jordão & Victor Gonçalves

 

Querido trágico

Querido trágico,

   por alguma razão a ópera morreu. Não que estivesses fechado dentro dela, os monstros agora já não estão vazios, decorrem. Há algum tempo dir-te-ia que nunca poderias proibir Turandot de gritar, mas agora não estou securo, sabes, perdi as tuas coisas. Tinha-as demasiado perto e gritavas, casa com a mãe, casa com a mãe, pobre rapaz, tinha pena de ti, as tuas histórias vinham sempre uma oitava acima e tinham ritmo por trás. Escrevo-te por uma razão. Tenho sempre uma razão, nem que seja porque aranha e razão partilham diversas letras. Vivo neste mundo pós-mundo, sabes, a religião agora não tem crucifixos nem ateus, fica parada, estamos todos tão presos, sabes, derramam as letras e elas formam-se em forma de crucifixo. E pensas: lá do oriente, lá do oriente, mas os antropólogos deram cabo disto tudo, sabes, sei que sabes muitas coisas, querido trágico, ficas aí tão no teu milénio, mas eu tenho modernices, sabes, posso “telefonar-te”, e depois tens de me pedir desculpa e dizer: “continua lá a falar do teu trágico”, e eu digo “qual trágico?”, e tu respondes: “não somos todos uma tragédia, meu querido?”, e eu penso, querias que casasse com a mãe, não era, seu porco, mas não, não, nunca matei nenhum pai, quer dizer, matei já trinta ou quarenta, mas nunca um, e tu perguntas, “confessas?” e eu: “confesso o quê?” e tu continuas-me a tratar-me por “trágico” e eu fico confuso, afinal que carta era esta, ouvida ao som de Turandot, eu fico a pensar, querido trágico, nervos e pele, pele e ossos, ossos e pó, pó e nada, nem sombra, sombras-me, e penso, “tragédia, meu querido?”, tragédia nunca vem do oriente, é sempre mais modesta, não tem escalas pentatónicas, nem hexatónicas, queria que criassem escalas sem notas, isto é, vicissitudes de som, desafinadas, queria que criassem, espero que leias estas notas em voz alta, soa sempre melhor, as pessoas lêem demasiado baixo, queria que os comboios se enchessem de pessoas a ler alto, Shakespeare de um lado, A Bola de outro, o Segredo dos Trinta e Sete de um lado, a Jóia de Peterson de outro e mais cinco mil livros que nunca existiram e no fundo o revisor seria verdadeiramente um revisor diria: “ponto e vírgula, senhor”, e outro responderia: “não aceito”, e tu, querido trágico, farias a tua fulgurante intervenção: “o senhor é pai deste senhor?”, e eu, eu seria forçado a dizer, enquanto lia, ou melhor leria do meu livro: “é sobre mim que fala, senhor?”, e o outro senhor ficaria na esquina, isto é, se os comboios tivessem esquinas, faria um leve diminuendo, e diria “Deus, que fazes?”, e outro responderia, “não sabes? sofro, sofro” e tu dirias: “mas vocês sofriam muito no século XIX” e tu dirias “no século xis i xis?” e tu pensarias: “que coisa esta, Turandot, Turandot, Turandoooooot?”. É claro, tens cinco tons. Não te cales por enquanto, estamos dentro da cena. “Deixa-me passar”. Deixa-me passar, não dividas atenções.

 

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta,

 

Pedro Braga Falcão